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4.4.10

85. as aventuras de tieta do agreste, pastora de cabras ou a volta da filha pródiga

tieta é de fato um livro envolvente. a temporada em são paulo me fez perceber a falha de nunca ter lido jorge amado, e agora talvez me anime a ir adiante no autor.
tenho apreciado fazer comparações entre o livro e a novela, e penso que aguinaldo fez um bom trabalho. alguns personagens ganham maior relevo, outros são sumariamente descartados da novela, mas acredito que tudo isso ocorreu para que o principal fosse mantido.


o legal de ler o livro ao mesmo tempo em que assisto aos capítulos da novela é perceber as sutilezas narrativas que os distanciam. narrar através de imagens é muito diferente de narrar através do texto literário. por exemplo: quando cardo, o seminarista, come a tia, seu sofrimento pelo medo do fogo no inferno é narrado, no livro, em duas ou três páginas, e parece suficiente ao leitor que assim seja. já na novela é necessário muito mais tempo para que o telespectador consiga ter a dimensão do peso que teve a saída do seminário, o abandono de deus e o apelo da tia.
o livro é um livro político, disfarçado na história de uma puta que volta rica pra cidadezinha onde morava. a novela não é uma novela política, ao menos não na mesma dimensão do livro. mas tem seus momentos.
no capítulo 48 há a explicitação de uma interessante metáfora que permite um pouco entender a adaptação desta obra do jorge amado para a televisão em 1989. a novela foi ao ar no período entre 14 de agosto de 1989 e 31 de março de 1990. o capítulo 48 foi exibido precisamente no dia 09 de outubro de 1989, uma segunda-feira. nesta fase da novela, zé esteves, o pai de tieta, que a escurraçou de santana do agreste cerca de 20 anos antes, está demonstrando que já tem poucos dias de vida. tem variado, pensa que tieta ainda é jovem e que ele ainda é um pastor de cabras a tocar o rebanho pela cidade. seu maior sonho é ter de volta as cabras que vendeu a jarde após a expulsão de tieta e, para realizar seu intento, pretende recorrer justamente à mesma tieta, já de volta à antiga cidade, ávida por vingança.
caduco, zé esteves vê coisas, ouve coisas, e algumas delas têm relação com o passado, quando, sem dó nem piedade, deixou tieta à própria sorte, pra ser mulher da vida pelas estradas do nordeste.
é justamente numa cena do capítulo 48 (por volta dos 40 min da cena) que a metáfora política da expulsão e do retorno de tieta é exposta.

zé esteves olha um calendário, o ano é 1989. de repente, em sua loucura senil, ele se vê novamente no dia em que mandou tieta embora a porretadas. o calendário que aparece a sua frente já não é mais de 1989, mas sim de 1968. o dia e o mês também são revelados: 13 de dezembro.
13 de dezembro de 1968, caralho! o dia da edição do AI-5!!!
suspensão das liberdades individuais, intervenção no judiciário, fechamento do congresso e cassação de mandatos. foi o recrudescimento da repressão durante a ditadura militar brasileira, iniciada com o golpe de primeiro de abril de 1964.
bom, aguinaldo silva faz referência direta a esta medida dos militares com a estratégia de utilizar o calendário de zé esteves para marcar a data. o velho, voltando à novela, retoma momentaneamente a razão e volta a enxergar o calendário original, o verdadeiro, o de 1989. o dia é 13 de novembro - ou seja, dois dias antes da primeira eleição direta para presidente no brasil após a redemocratização e após a nova constituição.
intrigante, não?
a expulsão de tieta é associada à edição do AI-5. na cena da expulsão, tieta está obviamente transando com lucas, apenas um de seus inúmeros casos no agreste, quando zé esteves aparece e a enche de porrada. em praça pública, pra todo mundo ver. perpétua, a irmã invejosa, foi quem dedurou, e nesta cena aparece muito satisfeita em ver tieta apanhar.
com exceção de uns poucos cachorros mortos, como tonha, dona milú e a jovem carmosina, ninguém sequer tenta evitar que tieta seja mandada embora pelo pai. dona milú até tenta pedir ajuda aos outros. o padre se abstém. o coronel artur da tapitanga parece até ter gostado do destino da "cabrita" que ele nunca teve. ninguém faz nada.
e tieta promete: vai, mas volta. mas não pra baixar a cabeça diante de toda a gente que não a quis. volta pra se vingar.



e, quando tieta retorna, em 1989, é ano eleitoral. como será que ela pretende empreender sua vingança?
mais intrigante ainda é o fato de aguinaldo silva ter se remontado, em sua metáfora, não ao dia exato do golpe militar (01/04/1964) - o que, aliás, fecharia com os tempos do romance de jorge amado, já que tieta retorna a santana do agreste 26 anos depois da expulsão pelo pai - , mas ao dia da edição do AI-5 - o que dá 21 anos depois. teria ele perdoado o golpe, em certo sentido?
bom, se relevou o golpe, mas não aceitou o AI-5 e todos os crimes cometidos após ele, eu não sei. entretanto, a campanha do lula (relembrando: os dois principais candidatos eram lula e collor), que ocorria televisivamente justamente na mesma época em que a novela ia ao ar, nos dá mais pano pra manga pra pensar. vejam só quem aparece:



aminthas, leonora, osnar, ascânio, a própria tieta, até o urubu azedo da perpétua e o capitalista modesto pires. todo mundo aparecendo na TV pra fazer campanha pro lulão. pra evitar totalmente os anacronismos e ELEVAR O NÍVEL da análise, restaria saber se esta propaganda era já para o primeiro turno, ou apenas para o segundo. mas isso eu não tenho saco de pesquisar agora.

UPDATE: foi campanha pro segundo turno. perpétua aparece com camiseta do partido verde, osnar exibe um lenço maragato brizolista no pescoço e etc.

Um comentário:

Anônimo disse...

Fantástica experiência de análise de uma narrativa conhecida por toda a nossa geração, mas que nunca recebeu a atenção que merece!

Beijos, Evandro.