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21.9.14

133.

embora fosse imensamente caricatural, o grande e desengonçado historiador, com aqueles seus sebosos cabelos caindo-lhe nos ombros, era sincero e crente.
naquele dia ele caminhava atento na mais larga rua para pedestres da cidade, atento a algo de que apenas ele tinha conhecimento. talvez atento a algo que lhe haviam dito e que ainda remoía, ressentido. os olhos fixos no chão que se movia sob seus pés, é bem provável que ele sequer percebesse tudo o que corria a sua frente - os papeis oferecendo aparelhos dentários, os pequeníssimos fragmentos de folhas de árvores, as guimbas de cigarro levemente marcadas de batom.
na quadra seguinte esbarrou com um conhecido e rapidamente deixou-o a par de seu último artigo publicado. sua existência deveria ser entendida por todos como dedicada ao seu trabalho, seu adorado trabalho, a que se entregava por horas sofridas de seus longos e estúpidos dias. acreditava piamente em sua rígida disciplina de trabalho, todos os dias escrevia 5 páginas, mesmo que não precisasse. sua escrita era pomposa e riquíssima em detalhes desnecessários, o que provavelmente causaria nos outros uma impressão de seriedade e distinção acadêmica. o historiador lia com deleite todos os autores que utilizassem um linguajar afrancesado. quem sabe isso seria herança da instituição que o formou...

132.

pacífico lavou, estendeu e passou os próprios lençois por três vezes em uma mesma semana. nunca estavam perfeitamente limpos. índico notou e achou o amigo demasiado exigente, mas nada disse para não se comprometer com nenhuma opinião. ademais, era sempre pacífico que recolhia as louças que ele deixava pela casa.
ártico obteve uma grande conquista, mas ninguém quis demonstrar contentamento com isso, pois o amigo costumava tornar-se arrogante. ártico sentiu-se ignorado e resolveu que tornaria ainda mais evidentes todos os seus ganhos.
atlântico ficou em casa lendo um livro. ninguém se importou, a não ser antártico, que reparou no título do livro e ficou curioso. antártico surpreendeu atlântico com um beijo na boca. ninguém mais viu. antártico não teve nenhuma culpa, mas sentiu-se culpado e trancou-se no quarto por 7 dias e 7 noites. na última delas, atlântico foi encontrá-lo em seus aposentos.

131. cidade pequena, cidade grande - texto 2

a sexta-feira à noite da cidade pequena é deveras diferente da sexta-feira à noite na cidade grande, mas não se engane aquele que imagina que não há nada para fazer. na cidade pequena as distâncias são menores e você vai a todo lugar com os próprios pés. e foi assim que me dirigi, na sexta-feira à noite, a um bistrô / bar de culinária hispânica, onde bebi vinho e comi pizza (mas com sabores do mediterrâneo).
no caminho havia poucas pessoas na rua. uma das características da cidade pequena é ter mais cães sem dono soltos nas ruas do que transeuntes em busca de diversão. nas poucas quadras que caminhei até meu destino, três estabelecimentos me chamaram a atenção. o primeiro era um snooker repleto de homens bebendo sua cachacinha e jogando sinuca. o bar tinha jeito de ser daqueles que virava a noite com seus habitués. o segundo estabelecimento era o rotary club. dava pra perceber alguma movimentação lá dentro, algumas luzes acesas, mas sem dúvida não se comparava ao agito em que se encontrava um dos museus chiques da cidade (o terceiro "estabelecimento"), onde uma reunião social ocorria animadamente. de fora, eu podia ver os charmosos lustres de cristal em pleno uso, os flashes atingindo rostos supermaquiados de senhoras que seguravam taças de champagne. pessoas bem vestidas e perfumadas se aglomeravam lá dentro, com rostos felizes e conversações polidas. acredito que o convescote era somente para convidados, segui até o meu próprio destino.

20.9.14

130. a rodoviária de baudelaire

quando estou na cidade pequena, sempre me pergunto qual seria a opinião de baudelaire sobre a vida que se leva em seus limites. ainda não conheço plenamente os limites da cidade pequena, mas desconfio seriamente que eles existem.

tanto na cidade pequena quando na grande, talvez existam poucos ambientes mais interessantes e rebuscados do que uma rodoviária. a possível exceção são os ônibus que chegam e partem dela diariamente. na rodoviária nós podemos ver as pessoas. nós podemos ver as pessoas não como as vemos numa praça, ou andando na rua. nós vemos as pessoas que, por uma razão ou outra, precisam deixar uma cidade. em um período limitado de tempo nós temos contato direto com fragmentos inusitados da vida alheia. a rodoviária, um dos ambientes mais baudelaireanamente modernos que se encontra ao redor do mundo, seja numa cidade pequena, seja numa cidade grande, nos remete ao fugidio, ao transitório, ao anônimo, ao desconhecido. e, contraditoriamente, nos arremessa para o interior da intimidade de pessoas estranhas, as quais, assim esperamos, nunca mais voltaremos a encontrar.

o cenário desses encontros cheira a fumaça e fritura e a mim parece o pano de fundo ideal para anonimamente escutar partes de conversas, captar trechos da vida dos outros.

rodoviária de uma pequena cidade que eu pensava ser maior do que de fato o era, meio-dia. ouço dois homens conversando na mesa de trás. um deles havia ido para uma cidade grande no fim-de-semana e um de seus objetivos era cometer adultério. achei curioso que o adultério devesse ser cometido na outra cidade. o homem contou uma história, na qual dificilmente se poderia acreditar, em que a mulher o levou para tomar um café num local cuja conta acabou em 72 reais. em função do alto valor, com o qual ele arcou sozinho, não pôde levá-la a um motel, muito embora ela o quisesse mais do que tudo. diante das investidas da mulher, o homem teria respondido, simplesmente, que não tinha mais dinheiro.

o companheiro para quem a história era relatada parece ter ficado sinceramente ofendido com o comportamento do amigo, tendo sido inadmissível, para ele, que um homem dissesse a uma mulher que não poderia levá-la a um motel por não ter mais dinheiro. o companheiro melindrado pedia que o outro, o adúltero, não se dissesse mais seu amigo porque, aparentemente, isso poderia jogar definitivamente seu nome na lama. o aspirante a adúltero, diante das reprimendas do amigo, mudava várias vezes a narrativa, a fim de se adequar ao padrão de comportamento esperado pelo outro. já não era mais por falta de dinheiro que ele não levara a mulher ao motel, mas sim porque ela "tinha bafo", por exemplo.

o amigo do aspirante a adúltero exercia uma grande influência sobre ele e provavelmente foi quem o convenceu a ir para a cidade grande em busca de aventuras sexuais. o aspirante, inseguro e provinciano (assim como seu amigo), fazia todo o possível para provar sua masculinidade. os critérios para ser visto como um homem me soaram ligeiramente arbitrários, estabelecidos pelo amigo influente, e não inteiramente compreendidos pelo outro. códigos de ética masculina contraditórios conviviam na relação entre os dois, mas a necessidade de contar histórias notavelmente falsas que deveriam ser aceitas como verdadeiras parece ser um aspecto comum no convívio entre os dois.

outro ponto digno de nota no relato sobre a tentativa malfadada de adultério é o modo como a cidade grande é narrada. em momento algum pareceu irritantemente falso o fato de uma conta de café ter custado 72 reais. é como se fosse possível contar histórias exageradas acerca da cidade grande.

também não diminuía a masculinidade dos amigos o fato de que esperavam cometer adultério fazendo uso de pílulas azuis.

19.9.14

129. cidade pequena, cidade grande - texto 1


os habitantes da cidade pequena geralmente vangloriam-se de características do local onde vivem supostamente adoradas por todos. eles imaginam que todos gostam, por exemplo, do fato de todo mundo se conhecer e de todos cumprimentarem a todos diariamente. é como se o anonimato da cidade grande fosse indesejável. a cidade pequena se pensa acolhedora em função de todos se conhecerem, como se não fosse acolhedora a possibilidade de estar só. há uma tranquilidade socialmente reconhecida na cidade pequena, mas a tranquilidade do anonimato, da possibilidade da solidão, da livre escolha dos vínculos que a cidade grande confere em geral não é reconhecida como tal.
os habitantes da cidade pequena têm seus assuntos favoritos. um deles, é claro, é o tempo. muitas conversas começam com um comentário: “esfriou”. a cidade pequena é acolhedora porque as pessoas sempre estão dispostas a conversar umas com as outras. boa parte das conversas, contudo, estão restritas a esta sorte de constatação meteorológica que, ademais, nem sempre é compartilhada por todos os interlocutores. em boa parte das vezes em que os habitantes da cidade pequena me interpelam com algum comentário a respeito da suposta queda abrupta da temperatura eu não penso que esteja realmente frio ou que a temperatura efetivamente caiu. de todo modo, creio não ser polido discordar a respeito de tão trivial questão.