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12.3.10

79. porto alegre na década de 1920

pesquisando no correio do povo da década de 1920 (belíssima aquisição recente do núcleo de pesquisa histórica da UFRGS), encontrei algumas curiosidades, principalmente relacionadas à publicidade da época.
a primeira que posto aqui é um anúncio da peça "o demônio familiar", de josé de alencar, que difunde a ideia de que o negro deve ser tutelado.

esta peça foi encenada pela primeira vez em 5 de novembro de 1857, no rio de janeiro, e recebeu os maiores elogios de toda a imprensa da época - à exceção de paula brito, no jornal a marmota. de fato, ela parece ter sido um marco na dramaturgia brasileira, já que rompeu com o teatro romântico, introduzindo a discussão sobre problemas sociais no teatro da terrinha.
bom, em 1857 uma peça que apresenta um escravo intrigueiro que por motivos mesquinhos arruína os destinos de vários personagens, está bem obviamente, digamos, dentro do contexto. a própria repercussão que a peça teve denota o quanto este (a instituição escravista) era um assunto a ser debatido. o nosso grande josé de alencar se posicionou politicamente acerca de um assunto candente do período.
mas esta peça foi novamente encenada em porto alegre no ano de 1922, no principal teatro da cidade. mais uma vez: ok ser uma peça em primeiro lugar de um autor canônico, considerado um dos grandes nacionais. entretanto, o assunto da peça, tão aparentemente restrito ao século XIX, sendo novamente posto em cena quase 70 anos depois... certamente nos possibilita reflexões acerca do nosso pós-abolição, hã?
não que o josé de alencar, por ter escrito lá no século XIX, não tenha contado com outras possibilidades de posicionamento. a perspectiva que ele deu à peça - e a toda uma questão social envolvendo a escravidão no brasil, então único país independente ainda escravista - foi a que ele escolheu dentre outras possíveis. vide machado de assis, por exemplo.
mas o que eu quero dizer é que normalmente as pessoas restringem os problemas gerados pela escravidão ao período anterior a 1888. a não ser pelo trabalho dos próprios historiadores, certos aspectos da história recente do país vão sendo aos poucos convenientemente esquecidos.
quando a gente se depara com algo tão real quanto um pedaço de um jornal de grande circulação em porto alegre (não no rio ou em são paulo, aqui mesmo), falando sobre uma peça a ser encenada no principal - e mais chique - teatro da cidade, sendo que essa peça defende a ideia da necessidade da tutela sobre a propulação negra - e isso tudo no ano de 1922 - talvez algumas coisas se tornem mais concretas.
sei que a digitalização não saiu das melhores, mas repare na cara do escravo, pedro. o próprio desenho que divulga a peça já indica que o principal do texto de josé de alencar parece ter sido mantido: o caráter do escravo. não por acaso, nesta mesma década de 1920 se firmavam teorias acerca do caráter do negro... aliás, não é difícil encontrar algumas delas no próprio correio do povo, devidamente assinadas por ilustres cidadãos gaúchos.
voltando ao século XIX, uma das pessoas que conferiu uma crítica muito positiva ao demônio familiar foi o próprio machado de assis. reproduzo o texto dele, de 1866, logo aqui abaixo, pensando no que o cara que foi o autor dos personagens subalternos mais interessantes da literatura brasileira oitocentista queria dizer com isso...


O TEATRO DE JOSÉ DE ALENCAR 
Uma grande parte das nossas obras dramáticas apareceu neste último decênio, devendo contar-se entre elas as estréias de autores de talento e de reputação, tais como os Srs. Conselheiro José de Alencar, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães e outros. O Sr. Dr. Macedo apresentou ao público, no mesmo período, novos dramas e comédias, e estava obrigado a fazê-lo, como autor do Cego e do Cobé. Desgraçadamente, causas que os leitores não ignoram fizeram cessar o entusiasmo de uma época que deu muito, e prometia mais. Deveremos citar entre essas causas a sedução política? Não há um, dos quatro nomes citados, que não tenha cedido aos requebros da deusa, uns na imprensa, outros na tribuna. Ora, a política que já nos absorveu, entre outros, três brilhantes talentos poéticos, o Sr. conselheiro Otaviano, o Sr. senador Firmino, o Sr. conselheiro José Maria do Amaral, ameaça fazer novos raptos na família das musas. Parece-nos, todavia, que se podem conciliar os interesses da causa pública e da causa poética. Basta romper de uma vez com o preconceito de que não cabem na mesma fronte os louros da Fócion e os louros de Virgílio. Por que razão o poema inédito do Sr. conselheiro Amaral e as poesias soltas do Sr. conselheiro Otaviano não fariam boa figura ao lado dos seus despachos diplomáticos e dos seus escritos políticos? Até que ponto deve prevalecer um preconceito que condena espíritos educados em boa escola literária ao cultivo clandestino das musas? Felizmente, devemos reconhecê-lo, vai-se rompendo a pouco e pouco com os velhos hábitos.
O Sr. Dr. Macedo, que ocupa um lugar na política militante, publicou há tempos um romance; o Sr. Dr. Pedro Luís não hesita em compor uma ode, depois de proferir um discurso na câmara; o Sr. conselheiro Alencar, que, apesar de retirado da cena política, será mais tarde ou mais cedo chamado a ela, enriqueceu a lista dos seus títulos literários. Que nenhum deles esmoreça nestes propósitos; é um serviço que a posteridade lhes agradecerá.
Desculpe-nos se há ingenuidade nestas reflexões; nem nos levem a mal se assumimos por este modo a promotoria do Parnaso, fazendo um libelo contra a república. Contra, não; mesmo que pregássemos o divórcio das musas e da política, ainda assim não conspirávamos em desfavor da sociedade; de qualquer modo é servi-la, e a história nos mostra que, após um longo período de séculos, é principalmente a musa de Homero que nos faz amar a pátria de Aristides.
Dos recentes poetas dramáticos a que nos referimos no começo deste artigo, é o Sr. Alencar um dos mais fecundos e laboriosos. Estreou em 1857, com uma comédia em dois atos, Verso e reverso. A primeira representação foi anunciada sem nome de autor, e os aplausos com que foi recebida a obra animaram-lhe a vocação dramática; daí para cá escreveu o autor uma série de composições que lhe criaram uma reputação verdadeiramente sólida. Verso e reverso foi o prenúncio; não é decerto uma composição de longo fôlego; é uma simples miniatura, fina e elegante, uma coleção de episódios copiados da vida comum, ligados todos a uma verdadeira idéia de poeta. Essa idéia é simples: o efeito do amor no resultado das impressões do homem. Aos olhos de protagonista, no curto intervalo de três meses, o mesmo quadro aparece sob um ponto de vista diverso; começa por achar no Rio de Janeiro um inferno, acaba de ver nele um paraíso; a influência da mulher explica tudo. Dizer isto é contar a comédia; a ação, de extrema simplicidade, não tem complicados enredos; mas o interesse mantém-se de princípio a fim, através de alguns episódios interessantes e de um diálogo vivo e natural.
Verso e reverso não se recomenda só por essas qualidades, mas também pela fiel pintura de alguns hábitos e tipos da época; alguns deles tendem a desaparecer, outros desapareceram e arrastariam consigo a obra do poeta, se ela não contivesse os elementos que guardam a vida, mesmo através das mudanças do tempo. Aquela comédia não encerra todo o autor das Asas de um anjo, mas já se deixa ver ali a sua maneira, o seu estilo, o seu diálogo, tudo quanto representa a sua personalidade literária, extremamente original, extremamente própria. Há sobretudo um traço no talento dramático do Sr. Alencar, que já ali aparece de uma maneira viva e distinta; é a observação das coisas, que vai até as menores minuciosidades da vida, e a virtude do autor resulta dos esforços que faz por não fazer cair em excesso aquela qualidade preciosa. É sem dúvida necessário que uma obra dramática, para ser do seu tempo e do seu país, reflita uma certa parte dos hábitos externos, e das condições e usos peculiares da sociedade em que nasce; mas além disto, quer a lei dramática que o poeta aplique o valioso dom da observação a uma ordem de idéias mais elevadas e é isso justamente o que não esqueceu o autor do Demônio familiar. O quadro do Verso e reverso era restrito demais para empregar rigorosamente esta condição da arte; e todavia há de merecer a atenção dos espectadores, ainda quando desapareçam completamente da sociedade fluminense os elementos postos em jogo pelo autor; e isso graças a três coisas: ao pensamento capital da peça, ao desenho feliz de alguns caracteres, e às excelentes qualidade do diálogo.
Verso e reverso deveu o bom acolhimento que teve, não só aos seus merecimentos, senão também à novidade da forma. Até então a comédia brasileira não procurava os modelos mais estimados; as obras do finado Pena, cheias de talento e de boa veia cômica, prendiam-se intimamente às tradições da farsa portuguesa, o que não é desmerecê-la mas defini-la; se o autor do Noviço vivesse, o seu talento, que era dos mais auspiciosos, teria acompanhado o tempo, e consorciaria os progressos da arte moderna às lições da arte clássica.
Verso e reverso não era ainda a alta comédia, mas era a comédia elegante; era a sociedade polida que entrava no teatro, pela mão de um homem que reunia em si a fidalguia do talento e a fina cortesia do salão.
A alta comédia apareceu logo depois, com o Demônio familiar. Essa é uma comédia de maior alento; o autor abraça aí um quadro mais vasto. O demônio da comédia, o moleque Pedro, é o Fígaro brasileiro, menos as intenções filosóficas e os vestígios políticos do outro. A introdução de Pedro em cena oferecia graves obstáculos; era preciso escapar-lhes por meios hábeis e seguros.
Depois, como apresentar ao espírito do espectador o caráter do intrigante doméstico, mola real da ação, sem fazê-lo odioso e repugnante? Até que ponto fazer rir com indulgência e bom humor das intrigas do demônio familiar? Esta era a primeira dificuldade do caráter e do assunto. Pelo resultado já sabem os leitores que o autor venceu a dificuldade, dando ao moleque Pedro as atenuantes do seu procedimento, até levantá-lo mesmo ante a consciência do público.
Primeiramente, Pedro é o mimo da família, o enfant gâté, como diria o viajante Azevedo; e nisso pode-se ver desde logo um traço característico da vida brasileira. Colocado em uma condição intermediária, que não é nem a do filho nem a do escravo, Pedro usa e abusa de todas as liberdades que lhe dá a sua posição especial; depois, como abusa ela dessas liberdades? por que serve de portador às cartinhas amorosas de Alfredo? por que motivo compromete os amores de Eduardo por Henriqueta, e tenta abrir as relações de seu senhor com uma viúva rica? Uma simples aspiração de pajem e cocheiro; e aquilo que noutro repugnaria à consciência dos espectadores, acha-se perfeitamente explicado no caráter de Pedro. Com efeito, não se trata ali de dar um pequeno móvel a uma série de ações reprovadas; os motivos do procedimento de Pedro são realmente poderosos, se atendermos a que a posição sonhada pelo moleque, está de perfeito acordo com o círculo limitado das suas aspirações, e da sua condição de escravo; acrescente-lhe a isto a ignorância, a ausência de nenhum sentimento do dever, e tem-se a razão da indulgência com que recebemos as intrigas do Fígaro fluminense.
Parece-nos ter compreendido bem a significação do personagem principal do Demônio familiar; esta foi, sem dúvida, a série de reflexões feitas pelo autor para transportar ao teatro aquele tipo eminentemente nosso. Ora, desde que entra em cena até o fim da peça, o caráter de Pedro não se desmente nunca: é a mesma vivacidade, a mesma ardileza, a mesma ignorância do alcance dos seus atos; e se de certo ponto em diante, cedendo as admoestações do senhor; emprega as mesmas armas da primeira intriga em uma nova intriga que desfaça aquela, esse novo traço é o complemento do tipo. Nem é só isso: delatando os cálculos de Vasconcelos a respeito do pretendente de Henriqueta, Pedro usa do seu espírito enredador, sem grande consciência nem do bem nem do mal que pratica; mas a circunstância de desfazer um casamento que servia aos interesses de dois especuladores, dá aos olhos do espectador uma lição verdadeiramente de comédia.
O Demônio familiar apresenta um quadro de família, com o verdadeiro cunho da família brasileira; reina ali um ar de convivência e de paz doméstica, que encanta desde logo; só as intrigas de Pedro transtornam aquela superfície: corre a ação ligeira, interessante, comovente mesmo, através de quatro atos, bem deduzidos e bem terminados. No desfecho da peça, Eduardo dá a liberdade ao escravo, fazendo-lhe ver a grave responsabilidade que desse dia em diante deve pesar sobre ele, a quem só a sociedade pedirá contas. O traço é novo, a lição profunda. Não supomos que o Sr. Alencar dê às suas comédias um caráter de demonstração; outro é o destino da arte; mas a verdade é que as conclusões do Demônio familiar, como as conclusões de Mãe, têm caráter que consolam a consciência; ambas as peças, sem saírem das condições da arte, mas pela própria pintura dos sentimentos e dos fatos, são um protesto contra a instituição do cativeiro.
Em Mãe é a escrava que se sacrifica à sociedade, por amor do filho; no Demônio familiar, é a sociedade que se vê obrigada a restituir a liberdade ao escravo delinqüente.
A peça acaba, sem abalos nem grandes peripécias, com a volta da paz da família e da felicidade geral. All is well that ends well, como na comédia de Shakespeare.
Não entramos nas minúcias da peça; apenas atendemos para o que ela apresenta de mais geral e mais belo; e contudo não falta ainda que apreciar no Demônio familiar, como por exemplo, os tipos de Azevedo e de Vasconcelos, as duas amigas Henriqueta e Carlotinha, tão brasileiras no espírito e na linguagem, e o caráter de Eduardo, nobre, generoso, amante. Eduardo sonha a família, a mulher, os hábitos domésticos, pelo padrão da família dele e dos costumes puros de sua casa.
Mais de uma vez enuncia ele os seus desejos e aspirações, e é para agradecer a insistência com que o autor faz voltar o espírito do personagem para esse assunto.
“A sociedade, diz Eduardo, isto é, a vida exterior, ameaça destruir a família, isto é, a vida interior.” A esta frase acrescentaremos este período: “A mulher moderna, diz Madama d’Agout, vive em um centro, que não é nem o ar grave da matrona romana, nem a morada aberta e festiva da cortesã grega, mas uma coisa intermediária que se chama sociedade, isto é, a reunião sem objeto de espíritos ociosos, sujeitos às prescrições de uma moral que pretende em vão conciliar as diversões de galanteria com os deveres da família.” Há, sem dúvida, mais coisas a dizer sobre a excelente comédia do Sr. José de Alencar; não nos falta disposição, mas espaço; nesta tarefa de apreciação literária há momentos de verdadeiro prazer; é quando se trata de um brilhante e de uma obra de gosto. Quando podemos achar uma dessas ocasiões é só com extremo pesar que não a aproveitamos toda.
Guardamos para outro artigo a apreciação das demais obras do distinto doutor do Demônio familiar.
6 de março de 1866.

8.3.10

78.

monsieur reveillon entrou retumbante na sala de jantar.
paralisando seus talheres no ar, madame juliette d'abajour olhou faiscante para george bidé. seu segredo seria finalmente revelado diante de todos, inlcusive do marido, monsieur cornichon?
todos voltaram-se para reveillon, a espera. os olhares fixos, as bocas entreabertas, os cabelos bem penteados já não importavam mais. reveillon permanecia parado, sério, quase desaforado.
um som agudo de cristais partindo foi seguido por um grito de madame d'abajour. a luxuosa e cintilante toalha sobre a mesa cuidadosamente posta agora continha uma larga mancha de vinho tinto, a escorrer por sobre a fina calça branca de monsieur cornichon.
madame d'abajour tremia, por entre lágrimas. era evidente seu estado de nervos.
george bidé levantou-se ansioso, a recolher os cacos da taça quebrada, esfregando avidamente um delicado guarnapo de linho inglês por sobre a mancha de vinho.
monsieur cornichon levantou-se constragido pela mancha na calça, passando sobre as partes sujas os dedos desajeitados. olhando inseguro para monsieur reveillon, finalmente disse:
- e então, mon ami? que notícia nos trazes?
monsieur reveillon aproximou-se lentamente, o chapéu nas mãos. george bidé massageava ternamente os ombros tensos de madame d'abajour.

77. adendo

doesn't have a point of view,
knows not where he's going to,
isn't he a bit like you and me?