Páginas

20.9.14

130. a rodoviária de baudelaire

quando estou na cidade pequena, sempre me pergunto qual seria a opinião de baudelaire sobre a vida que se leva em seus limites. ainda não conheço plenamente os limites da cidade pequena, mas desconfio seriamente que eles existem.

tanto na cidade pequena quando na grande, talvez existam poucos ambientes mais interessantes e rebuscados do que uma rodoviária. a possível exceção são os ônibus que chegam e partem dela diariamente. na rodoviária nós podemos ver as pessoas. nós podemos ver as pessoas não como as vemos numa praça, ou andando na rua. nós vemos as pessoas que, por uma razão ou outra, precisam deixar uma cidade. em um período limitado de tempo nós temos contato direto com fragmentos inusitados da vida alheia. a rodoviária, um dos ambientes mais baudelaireanamente modernos que se encontra ao redor do mundo, seja numa cidade pequena, seja numa cidade grande, nos remete ao fugidio, ao transitório, ao anônimo, ao desconhecido. e, contraditoriamente, nos arremessa para o interior da intimidade de pessoas estranhas, as quais, assim esperamos, nunca mais voltaremos a encontrar.

o cenário desses encontros cheira a fumaça e fritura e a mim parece o pano de fundo ideal para anonimamente escutar partes de conversas, captar trechos da vida dos outros.

rodoviária de uma pequena cidade que eu pensava ser maior do que de fato o era, meio-dia. ouço dois homens conversando na mesa de trás. um deles havia ido para uma cidade grande no fim-de-semana e um de seus objetivos era cometer adultério. achei curioso que o adultério devesse ser cometido na outra cidade. o homem contou uma história, na qual dificilmente se poderia acreditar, em que a mulher o levou para tomar um café num local cuja conta acabou em 72 reais. em função do alto valor, com o qual ele arcou sozinho, não pôde levá-la a um motel, muito embora ela o quisesse mais do que tudo. diante das investidas da mulher, o homem teria respondido, simplesmente, que não tinha mais dinheiro.

o companheiro para quem a história era relatada parece ter ficado sinceramente ofendido com o comportamento do amigo, tendo sido inadmissível, para ele, que um homem dissesse a uma mulher que não poderia levá-la a um motel por não ter mais dinheiro. o companheiro melindrado pedia que o outro, o adúltero, não se dissesse mais seu amigo porque, aparentemente, isso poderia jogar definitivamente seu nome na lama. o aspirante a adúltero, diante das reprimendas do amigo, mudava várias vezes a narrativa, a fim de se adequar ao padrão de comportamento esperado pelo outro. já não era mais por falta de dinheiro que ele não levara a mulher ao motel, mas sim porque ela "tinha bafo", por exemplo.

o amigo do aspirante a adúltero exercia uma grande influência sobre ele e provavelmente foi quem o convenceu a ir para a cidade grande em busca de aventuras sexuais. o aspirante, inseguro e provinciano (assim como seu amigo), fazia todo o possível para provar sua masculinidade. os critérios para ser visto como um homem me soaram ligeiramente arbitrários, estabelecidos pelo amigo influente, e não inteiramente compreendidos pelo outro. códigos de ética masculina contraditórios conviviam na relação entre os dois, mas a necessidade de contar histórias notavelmente falsas que deveriam ser aceitas como verdadeiras parece ser um aspecto comum no convívio entre os dois.

outro ponto digno de nota no relato sobre a tentativa malfadada de adultério é o modo como a cidade grande é narrada. em momento algum pareceu irritantemente falso o fato de uma conta de café ter custado 72 reais. é como se fosse possível contar histórias exageradas acerca da cidade grande.

também não diminuía a masculinidade dos amigos o fato de que esperavam cometer adultério fazendo uso de pílulas azuis.

Nenhum comentário: