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2.11.15

137. um enterro qualquer

capítulo 1 - parte 2

Chegando pontualmente na pequena peça que servia à sua sapataria, Natálio, como fazia todos os dias, ligou a minúscula TV preto e branco que ficava num canto empoeirado, espremida entre os apetrechos que possibilitavam os consertos dos calçados que lá chegavam. Ligou a minúscula TV para, minutos depois, repassando os poucos canais mal sintonizados, constatar que nada ali lhe interessava. Ficou, então, acompanhando o movimento na rua, imerso em seus pensamentos, eventualmente empurrando os joelhos contra o balcão a fim de sentir seus ossos. Eles demarcavam sua identidade mais pura. Pensou em dona Neuza e nos ossos de dona Neuza. Os ossos de dona Neuza sem dúvida durariam mais do que ela, mas será que a identidade dela dependeria disso? 
As bananas estavam mesmo verdes, ela pensou, quando colocou os cachos no expositor. Na noite anterior havia ainda comentado com sua irmã que precisava repensar o fornecedor. As duas viviam juntas num pequeno apartamento térreo, de frente, mas que tinha um fosso de iluminação, que atendia as peças que ficavam nos fundos, capaz de fazer com que os apartamentos de cima escutassem nitidamente tudo o que diziam. A irmã de dona Neuza fazia bolos para fora e lembrou, escutando os comentários sobre o fornecimento de bananas, que para bolos era necessário que as bananas estivessem bem maduras. Mas lembrou também que bastava colocá-las um tempo no forno e poderiam ser utilizadas nas mesmas receitas, mesmo ainda um pouco verdes. Imediatamente sentiu um odor de canela, apesar de não ter canela por perto, mas as bananas a lembravam de uma receita de bolo com bananas e canela e logo associou uma coisa à outra. Fazia tempo que ninguém encomendava o bolo de banana com canela da irmã da dona Neuza.
Dona Neuza e a irmã, à noite, gostavam de ver TV, mas às vezes precisavam aumentar muito o volume devido às falas dos vizinhos nos apartamentos de cima, que invariavelmente podiam ser ouvidas da sala da casa delas. Também era possível ouvir os passos dos vizinhos de cima, mesmo quando eles não utilizassem calçados com salto. Alguns vizinhos caminhavam pressionando muito os calcanhares no chão, elas percebiam, e observavam uma para a outra como as pessoas eram rudes e despreparadas para ter empatia para com o próximo. Às vezes uma vizinha usava salto e parecia mesmo correr usando os sapatos de salto, batendo-os no assoalho como se batesse pequenos tocos de madeira. A irmã de dona Neuza eventualmente divertia-se imaginando os significados dos barulhos dos vizinhos e pensava na vizinha de cima como uma holandesa andando em tamancos tradicionais. Quando tentava comentar o que pensava, divertida, com dona Neuza, muitas vezes ouvia um “shhh!” quase indignado, mas na verdade indiferente demais para se indignar. É que dona Neuza queria escutar uma notícia ou um comentário qualquer feito por desconhecidos na televisão, e já tinha que fazer sua audição driblar os ruídos vindos dos vizinhos, não queria também ter que lidar com os barulhos da irmã em sua própria casa.
Dona Neuza cultivava no jardim lateral do apartamento uma hortinha de temperos, para onde ia quando queria pensar na vida ou escutar o vozerio da vizinhança. Uma das coisas nas quais pensava quando remexia nas plantinhas e na terra era na sonhada reforma da cozinha, que planejava como homenagem secreta à sua irmã. Como a irmã fazia bolos e disso tirava seu sustento, dona Neuza justificava a substituição dos antigos ladrilhos hidráulicos originais do edifício por porcelanato novo, na verdade um sonho seu, como se fora uma contribuição sua ao ofício da irmã. O ladrilho da cozinha tinha desenhos geométricos em azul e amarelo, de um azul e um amarelo muito foscos, tanto porque já deviam ser um pouco assim, quanto, pensava dona Neuza, pelo encardido do tempo. Numa reconhecida revista de decoração de tiragem nacional saíra há poucos meses uma moderna cozinha na qual os donos haviam empreendido rotundo investimento na busca por ladrilhos hidráulicos originais dos anos 50, no mesmo padrão daqueles que revestiam o piso da cozinha da dona Neuza, e os editores e redatores da revista festejavam a volta da moda de tão preciosa arte. A bem da verdade, a jornalista Ana Mattos Borba, responsável pela matéria, procurou por mais tempo do que tinha disponível exemplos de ladrilhos raros e lindos em museus do azulejo da cidade. No penúltimo parágrafo, ela julgou importante comentar o quanto aquelas preciosidades agonizavam anônimas em tantos prédios antigos. Enquanto escrevia, Ana Mattos Borba chegou a imaginar os pobres ladrilhos desprotegidos nas mãos de pessoas sem gosto para apreciá-los. Ela sofreu por alguns instantes por aqueles padrões geométricos que jamais conheceria. Isso, naturalmente, foi esquecido durante o jantar, já que precisou esperar as amigas por cerca de meia hora sozinha no restaurante, tendo como única companhia seu telefone celular.
Enquanto observava o padrão geométrico do ladrilho da cozinha, ela pensava apenas que aquilo era mais velho do que ela e nunca parecia verdadeiramente limpo. Largou os temperos no balcão branco da pia e separou aqueles que pretendia lavar. Antes, contudo, de ligar a torneira, procurou no chão os pontos em que os ladrilhos estavam mal colocados, afetando o padrão, que se desfazia. Dona Neuza sentiu carinho por aquela parte do velho piso, como se fossem um segredo da sua própria vida. Hesitou quanto à reforma, mais uma vez, como ocorria já há tantos anos, porque hesitava abrir mão daquele pedaço de piso em que os losangos amarelo foscos não se encaixavam. Sentiu com aquela parte sem vida do chão uma inesperada cumplicidade. Mas era preciso seguir em frente. Na mercearia, ela lembrou dos planos para a cozinha. Seria perder uma parte de si mesma? Sim, as bananas estavam novamente verdes, era preciso repensar o fornecedor. Ao mesmo tempo, não seria bonito surpreender a irmã com uma cozinha nova? Perdeu-se em pensamentos desconexos ao ter sua atenção chamada pela TV - aparentemente uma nova enchente acometia o sul do estado.
Natálio não se interessou pela enchente desta vez. Sentia fome. Procurou concentrar-se no serviço para a dona Regina, cliente fiel, que desta vez deixara uma bolsa de couro. A fivela indicava a origem italiana. No interior da bolsa, notou que havia um pelo. Era muito espesso para ser de gato, pensou, e chegou à conclusão de que dona Regina devia ter um cachorro preto, que tinha acesso à bolsa. Talvez o cachorro fosse o responsável pelo dano na alça, que Natálio agora tentava reparar. Lembrou-se que, em sua displicência, esquecera de deixar um potinho cheio de água para o gato. Teria de ir até em casa no horário de almoço, o que talvez atrasasse ou inviabilizasse sua ida ao hospital. Sentia fome. 
A sapataria de Natálio não era mais do que um corredorzinho onde se espremia um balcão atrás do qual Natálio trabalhava e atendia. Da rua, se via uma porta e uma peça estreita e escura, onde ao fundo uma estante exibia botas femininas, com canos altos dobrados, pendendo sobre outros calçados, e também botas masculinas, gaudérias. Alguns sapatos de cano curto, uns poucos sapatos de salto. Num balcão ainda menor, à esquerda da estante, ficavam os instrumentos de trabalho de Natálio e vez ou outra ele precisava procurar alguma coisa perdida dentro de uma gaveta. Em cima de um banquinho, ao lado da passagem através da qual se chegava atrás do balcão, ficava a TV preto e branco, raramente ligada, utilizada mais para que Natálio pudesse ter o atrativo de escutar outras vozes humanas do que pelo conteúdo do que essas vozes diziam. A passagem para trás do balcão era tão estreita, tão estreita, que apenas alguém tão esguio quanto Natálio podia se contentar com ela. E atrás daquele balcão de madeira crua, mal cortado e mal montado, onde algumas anotações à caneta podiam ser vistas na superfície, como se alguém tivesse usado a superfície de madeira para fazer algum cálculo urgente, Natálio passava seus dias sentado em uma cadeira cujo estofamento estava rasgado. Não havia mais a chance de cálculos urgentes serem novamente necessários, tornando imperioso que se riscasse com a caneta a superfície de madeira, uma vez que Natálio agora tinha sempre consigo um bloco de anotações e uma calculadora. Assim mesmo, outras urgências da vida o faziam rabiscar com estrelas e quadrados, que depois se tornavam cubos, o velho balcão.
Ao meio-dia foi em casa, deu água ao gato e aproveitou para comer os restos do guisado guardado na geladeira. O gato secretamente suspeitava que acabaria tendo direito sobre o guisado, já que Natálio frequentemente esquecia os potinhos com restos de comida na geladeira e acabava jogando-os no pote de comida do gato. O gato lembrava pelo menos umas duas ou três vezes em que essa sorte de coisa ocorrera. Ele naturalmente preferia a ração, que já se fazia de tantas formas e sabores diferentes, mas não dispensava imaginar se a comida da geladeira poderia chegar ao seu pote de comida. Quando isso ocorria, geralmente tocava a comida fria com o nariz algumas vezes, cara de profundo desgosto, para em seguida recolher-se em outro cômodo da casa, demonstrando que o jantar não estava no seu agrado. Uma vez o gato realmente incomodou-se com tamanho desaforo e miou alto, um mio alto e longo, muito longo, um pouco persistente demais. Estava indignado. Ao recolher-se na sala, notou que Natálio abaixava-se para alcançar o potinho, depois raspava no lixo a comida dentro dele, depois lavava o potinho e por fim colocava a ração favorita do gato no lugar dos restos. Mas o gato apenas olhou emburrado, de longe, sem dirigir-se afobado à comida, como o cachorro da dona Regina poderia fazer, sem dignidade. Ao contrário, demonstrou que já estava envolvido com outras coisas, ao espreguiçar-se longamente sobre o tapete, arranhando um pouco, de propósito, a tecelagem. Depois virou de costas e dormiu, ou fez que dormiu, infelizmente nunca saberemos ao certo. Natálio também já havia se envolvido com outras coisas, mas, desta vez, de fato isso havia ocorrido, e esqueceu-se de chamar o gato para a refeição. Alguns minutos depois, deu-se conta de que o gato não havia aparecido na cozinha por conta própria e o chamou:
- psipsipsipsipsipsi…
O gato, num sobressalto, já esquecido do desentendimento, ficou de orelhas atentas, olhou por alguns instantes para a cozinha, de onde vinha o som, e, majestoso, caminhou rápido, mas sem correr.  Comeu a ração.
Natálio comeu o guisado pensando tão somente em ter tempo de chegar ao hospital. Era um ritual mais para si mesmo do que uma demonstração de devoção com seu irmão, embora sentisse certo tipo de dívida pelo fato de ser o único ainda saudável da família. Ia todos os dias ao hospital visitar o irmão. Sentava-se ao lado da cama e lá ficava, muitas vezes sem dizer nada, pois parecia a ambos que não havia nada a ser dito. Tudo estava dado. Era como se sobre os lances irreversíveis da vida não houvesse palavras, afinal nenhuma era tão densa, tão poderosa, tão cheia de sentido. Natálio era um homem simples e não se reconhecia com a possibilidade de combinar certo número de palavras que fossem capazes de dizer qualquer coisa de relevante sobre sua situação. 

1.11.15

136. um enterro qualquer

capítulo 1


A chaleira chiava na cozinha. No quarto, Natálio calçava os sapatos vagarosamente. Enquanto escutava o barulho da chaleira, pensava e observava cada pequeno pedaço de seus pés. Masseageava suavemente cada dedo, todos os dias, sentindo os ossos. Pensava nesses ossos que sustentavam seu corpo e que eram tudo o que restaria dele no futuro, como era tudo o que restava hoje de Emília. Massageava seus ossos dos pés, analisava o meio dos dedos, à procura de feridas ou alergias. Massageava seus ossos dos pés - eram seus ossos - e enquanto sentia essa camada interna e dura de si mesmo questionava se ela não era a sua mais sólida identidade. Seus ossos seriam tudo o que restaria de si mesmo, um dia. A sua própria existência seria resumida a estes mesmos ossos hoje protegidos, e a algumas lembranças que deixaria na memória de meia dúzia de pessoas. Apalpou o dedão esquerdo, notou uma pequena rouxidão. Seria um tumor? Mas não tinha ele batido contra a quina da mesinha da sala? Quando foi isso, ontem? Não, anteontem. Foi quando Natálio retornava da feira, como fazia toda quarta-feira. Então, bateu na mesinha na quarta-feira e somente agora ficou roxo. Será possível levar tantos dias para uma unha ficar roxa? Talvez o roxo não viesse da batida na mesinha. Deveria observar? Sim, provavelmente o mais prudente seria manter o dedão sob observação a fim de acompanhar o desenvolvimento da rouxidão e assim, quem sabe, verificar se sua procedência poderia mesmo estar relacionada à batida. Ainda com as mãos tocando suavemente a superfície do dedo, averiguando se sentia dor, Natálio prestou atenção no barulho da chaleira na cozinha. Há quanto tempo já estava fervendo a água para fazer seu café? 
Natálio colocou as meias e a seguir os sapatos mocassins já antigos, mas cujas solas ele já havia remendado algumas vezes em sua própria oficina. Levantou-se da beira da cama, onde estava sentado, resignado com o próprio fracasso em cuidar coisas simples como o tempo de fervura da água para o café. Contemplou a chaleira assoviando sobre a chapa do fogão, lembrou-se do roxo da unha no pé esquerdo que não teria capacidade de cuidar. Tentou sentir a unha sob o couro do sapato, mas não sentiu nada. Enquanto despejava a água quente sobre o filtro de café, pensou ter sentido uma leve dormência, talvez um formigamento, o que o fez colocar a chaleira de lado enquanto a água escorria pelo filtro reaparecendo escura do outro lado. Sentou-se no banquinho moxo que ficava próximo à pia e retirou com cautela primeiro o sapato e a seguir a meia do pé esquerdo. Olhou para a unha, que continuava exatamente do mesmo jeito que minutos antes. Ponderou por um momento se o sapato não iria “sufocar” o machucado, se não deveria deixá-lo arejado utilizando chinelos ao invés do surrado mocassim. Ainda descalço continuou a despejar a água para fazer o café, ciente dos inúmeros descuidos cometidos em apenas uma manhã e que poderiam lhe custar graves atrasos na sapataria. Sentia o frio do piso da cozinha nos dedos dos pés e nos calcanhares. Era sua pele que sentia, não seus ossos. Eram seus nervos que sentiam frio ou dor. Pisou com mais força até sentir o osso do dedo, ele ainda estava ali, o osso do seu dedo, de onde vinha quem ele era, que lhe dava sua identidade mais perene, pois seriam seus ossos que perdurariam a seus nervos. 
O café estava pronto e o cheiro quente se espalhava por toda casa. Natálio gostava de adoçar seu café e o tomava sempre com o acompanhamento de uma fatia de pão com requeijão, toda manhã. Sentou-se diante da pequena mesa ao lado da geladeira e, enquanto comia, o gato malhado em preto e branco se aproximava sorrateiro do dedo roxo. Depois, cheirou a meia e o interior do sapato, largados perto da pia e concluiu que nada daquilo lhe interressava. Mexeu as orelhas como se condenasse Natálio por lhe proporcionar uma vida tão insossa. Miou contrariado umas duas vezes e depois deitou num canto da cozinha, fazendo Natálio pensar em como aquelas condenações eram forçadas, pois o gato não tinha ele próprio força de vontade para mudar sua vida e para lhe acrescentar aventuras. Natálio puxou um pedaço miúdo do miolo do pão e enrolou em uma bolinha, bem pequena, bem pequena mesmo, que ficou tão enroladinha que nem parecia mais um pedaço de pão, mas um pedaço de qualquer outra estrutura sólida que não podia ser fruto de farinha, leite e ovo. Após breve contemplação daquela bolinha, constatou que sua perfeição era apenas aparente e saltavam aos olhos as rugosidades do pão, que só ficavam bem apertadas por pouco tempo após o contato com os dedos. Mastigando uma mordida daquele mesmo pão que era o pai da bolinha, atirou-a, a bolinha imperfeita, no gato. A bolinha bateu de forma diferente do que se imaginaria no pelo das costas do gato, sem causar a ele qualquer perturbação. Natálio pensou, “aí está, nem assim tu reage, gato”. Como poderia Natálio ser responsável pelo tédio de um gato incapaz de se revoltar com a bolinha, de senti-la, de agredir Natálio por tê-la atirado?
A bolinha só era visível pois havia estagnado numa das partes pretas do lombo do gato, que ainda dormia na ignorância das infâmias que se lhe cometiam pelas costas, ficando visível que ela não passava mesmo de um farelo de pão, uma sujeira que o gato derrubaria no chão da cozinha tão logo se mexesse ou se levantasse. Natálio imaginou aquela bolinha outrora perfeita caindo pesada sobre o chão branco da cozinha, permanecendo lá por vários dias até se juntarem a ela cabelos e pelos de gato, poeiras de todos os cantos, e aquela bolinha de pão se tornar definitivamente uma bolinha de sujeira. Levantou-se imediatamente e retirou a bolinha das costas do gato, que imaginou estar recebendo um carinho e virou a barriga para cima. Natálio roçou suavemente o dedo com a unha roxa na barriga do gato enquanto jogava a bolinha de pão no lixinho da pia. O gato gostou do carinho, mas mesmo assim tentou segurar o pé machucado de Natálio com as unhas e torná-lo algum tipo de inimigo, fazendo com que Natálio retirasse com despeito e rancor o pé de perto do gato e, sentado no banquinho moxo, recolocasse a meia e o mocassim. O gato se esfregava nas pernas de Natálio. 
Era mais um dia que começava, exatamente como todos os outros, exceto pelos deslizes que mudavam todos os dias e que recobriam a rotina de Natálio de fracassos. Não fora capaz de cuidar da saúde da parte de baixo de sua unha, o que lhe custava um dedo roxo embaixo da unha, sabe-se lá com que infecções podendo ali se formarem. Também, entretido com a verificação meticulosa do problema na unha, esqueceu a chaleira fervendo no fogão, atrasando o tempo de fazer o café e consequentemente atrasando sua chegada à sapataria. Talvez hoje ele tivesse que se privar de ver as frutas na mercearia da rua de trás antes do trabalho. Apenas passaria em frente da porta da dona Neuza com um cordial cumprimento, mas sem a tradicional apreciação das bananas que ultimamente sempre vinham verdes. O que ocasionaria essa antecipação da colheita das bananas? Tudo na natureza não devia ter seu tempo? Os produtores apenas repassavam o problema do amadurecimento das bananas aos consumidores, ao invés de eles próprios esperarem o momento certo de vender as bananas. Quem deixaria de comprar bananas, mesmo que estivessem verdes? A dona Neuza também não conhecia os produtores das bananas e dizia não poder fazer nada quanto a isso, uma vez que não era responsabilidade dela o estado que as bananas chegavam. Elas eram trazidas numa caminhonete. O dono da caminhonete também não era responsável pelas bananas. 
Frustrado ao relembrar o incômodo que o problema das bananas lhe causava diariamente, Natálio partiu resoluto direto para a sapataria, sem se culpar por não entrar na mercearia da dona Neuza. Acenou de longe:
- Bom dia, dona Neuza! As bananas estão verdes, não é? Não, não vou olhar hoje, estou realmente atrasado, respondeu, logo se perguntando intimamente o que comeria no seu lanche das 10h, já que havia preterido as bananas verdes. Sentiu uma fisgada no dedo esquerdo. Era a unha roxa roçando na costura do mocassim. Não havia sentido nada antes porque ainda não tinha caminhado de sapatos. Passou inconscientemente a mancar, na tentativa de proteger o pequeno machucado de novas contusões provocadas pela textura do calçado. Se deu conta que faltava alguma coisa, que havia esquecido de algo muito importante. O que poderia ser?
Ajeitou um pouco o sapato esquerdo com o bico do sapato direito, imaginando que reposicionando a costura a fisgada cessaria. Do que não se lembarava, o que havia esquecido? Enquanto tocava com um pé a parte de trás do outro pé, ajeitando o sapato, olhava para o céu azul e pensava como já estava quente àquela hora da manhã. Sentiu um desconforto também embaixo da camisa, não queria que a camisa limpa ficasse suada tão cedo, mas estava parado no sol e isso agora parecia inevitável. Seguiu seu caminho mancando um pouco, secando com um lenço as pequeníssimas gotas de suor que haviam se formado na testa e no pescoço, tentando evitar tocar as mãos suadas na camisa limpa. O que havia esquecido, afinal? Não devia estar segurando alguma coisa?
As bananas! Devia estar segurando as bananas que comprava diariamente na mercearia, após breves infortúnios ao discutir com dona Neuza sobre a condição em que as bananas ultimamente se encontravam. As bananas que comia sempre às 10h da manhã na mercearia, duas pela manhã, separando outras duas para a tarde.

12.12.14

134. a cidade pequena é cosmopolita

poucos meses na cidade pequena me habilitam a esta sorte de constatação. um evento cotidiano pode ser ilustrativo aos descrentes:
rodoviária da cidade pequena, domingo à meia-noite. na fila de embarque, os seguintes cidadãos entregam o bilhete ao motorista: mulher muçulmana com véu enrolado nos cabelos; casal gay que se beija apaixonadamente em função da despedida; grupinho de jovens do tipo tropicalista-cabelo-ao-vento-gente-jovem-reunida, que aparentemente se comunicava por meio de frases acompanhadas pelo violão; eu e o desenho.

21.9.14

133.

embora fosse imensamente caricatural, o grande e desengonçado historiador, com aqueles seus sebosos cabelos caindo-lhe nos ombros, era sincero e crente.
naquele dia ele caminhava atento na mais larga rua para pedestres da cidade, atento a algo de que apenas ele tinha conhecimento. talvez atento a algo que lhe haviam dito e que ainda remoía, ressentido. os olhos fixos no chão que se movia sob seus pés, é bem provável que ele sequer percebesse tudo o que corria a sua frente - os papeis oferecendo aparelhos dentários, os pequeníssimos fragmentos de folhas de árvores, as guimbas de cigarro levemente marcadas de batom.
na quadra seguinte esbarrou com um conhecido e rapidamente deixou-o a par de seu último artigo publicado. sua existência deveria ser entendida por todos como dedicada ao seu trabalho, seu adorado trabalho, a que se entregava por horas sofridas de seus longos e estúpidos dias. acreditava piamente em sua rígida disciplina de trabalho, todos os dias escrevia 5 páginas, mesmo que não precisasse. sua escrita era pomposa e riquíssima em detalhes desnecessários, o que provavelmente causaria nos outros uma impressão de seriedade e distinção acadêmica. o historiador lia com deleite todos os autores que utilizassem um linguajar afrancesado. quem sabe isso seria herança da instituição que o formou...

132.

pacífico lavou, estendeu e passou os próprios lençois por três vezes em uma mesma semana. nunca estavam perfeitamente limpos. índico notou e achou o amigo demasiado exigente, mas nada disse para não se comprometer com nenhuma opinião. ademais, era sempre pacífico que recolhia as louças que ele deixava pela casa.
ártico obteve uma grande conquista, mas ninguém quis demonstrar contentamento com isso, pois o amigo costumava tornar-se arrogante. ártico sentiu-se ignorado e resolveu que tornaria ainda mais evidentes todos os seus ganhos.
atlântico ficou em casa lendo um livro. ninguém se importou, a não ser antártico, que reparou no título do livro e ficou curioso. antártico surpreendeu atlântico com um beijo na boca. ninguém mais viu. antártico não teve nenhuma culpa, mas sentiu-se culpado e trancou-se no quarto por 7 dias e 7 noites. na última delas, atlântico foi encontrá-lo em seus aposentos.

131. cidade pequena, cidade grande - texto 2

a sexta-feira à noite da cidade pequena é deveras diferente da sexta-feira à noite na cidade grande, mas não se engane aquele que imagina que não há nada para fazer. na cidade pequena as distâncias são menores e você vai a todo lugar com os próprios pés. e foi assim que me dirigi, na sexta-feira à noite, a um bistrô / bar de culinária hispânica, onde bebi vinho e comi pizza (mas com sabores do mediterrâneo).
no caminho havia poucas pessoas na rua. uma das características da cidade pequena é ter mais cães sem dono soltos nas ruas do que transeuntes em busca de diversão. nas poucas quadras que caminhei até meu destino, três estabelecimentos me chamaram a atenção. o primeiro era um snooker repleto de homens bebendo sua cachacinha e jogando sinuca. o bar tinha jeito de ser daqueles que virava a noite com seus habitués. o segundo estabelecimento era o rotary club. dava pra perceber alguma movimentação lá dentro, algumas luzes acesas, mas sem dúvida não se comparava ao agito em que se encontrava um dos museus chiques da cidade (o terceiro "estabelecimento"), onde uma reunião social ocorria animadamente. de fora, eu podia ver os charmosos lustres de cristal em pleno uso, os flashes atingindo rostos supermaquiados de senhoras que seguravam taças de champagne. pessoas bem vestidas e perfumadas se aglomeravam lá dentro, com rostos felizes e conversações polidas. acredito que o convescote era somente para convidados, segui até o meu próprio destino.

20.9.14

130. a rodoviária de baudelaire

quando estou na cidade pequena, sempre me pergunto qual seria a opinião de baudelaire sobre a vida que se leva em seus limites. ainda não conheço plenamente os limites da cidade pequena, mas desconfio seriamente que eles existem.

tanto na cidade pequena quando na grande, talvez existam poucos ambientes mais interessantes e rebuscados do que uma rodoviária. a possível exceção são os ônibus que chegam e partem dela diariamente. na rodoviária nós podemos ver as pessoas. nós podemos ver as pessoas não como as vemos numa praça, ou andando na rua. nós vemos as pessoas que, por uma razão ou outra, precisam deixar uma cidade. em um período limitado de tempo nós temos contato direto com fragmentos inusitados da vida alheia. a rodoviária, um dos ambientes mais baudelaireanamente modernos que se encontra ao redor do mundo, seja numa cidade pequena, seja numa cidade grande, nos remete ao fugidio, ao transitório, ao anônimo, ao desconhecido. e, contraditoriamente, nos arremessa para o interior da intimidade de pessoas estranhas, as quais, assim esperamos, nunca mais voltaremos a encontrar.

o cenário desses encontros cheira a fumaça e fritura e a mim parece o pano de fundo ideal para anonimamente escutar partes de conversas, captar trechos da vida dos outros.

rodoviária de uma pequena cidade que eu pensava ser maior do que de fato o era, meio-dia. ouço dois homens conversando na mesa de trás. um deles havia ido para uma cidade grande no fim-de-semana e um de seus objetivos era cometer adultério. achei curioso que o adultério devesse ser cometido na outra cidade. o homem contou uma história, na qual dificilmente se poderia acreditar, em que a mulher o levou para tomar um café num local cuja conta acabou em 72 reais. em função do alto valor, com o qual ele arcou sozinho, não pôde levá-la a um motel, muito embora ela o quisesse mais do que tudo. diante das investidas da mulher, o homem teria respondido, simplesmente, que não tinha mais dinheiro.

o companheiro para quem a história era relatada parece ter ficado sinceramente ofendido com o comportamento do amigo, tendo sido inadmissível, para ele, que um homem dissesse a uma mulher que não poderia levá-la a um motel por não ter mais dinheiro. o companheiro melindrado pedia que o outro, o adúltero, não se dissesse mais seu amigo porque, aparentemente, isso poderia jogar definitivamente seu nome na lama. o aspirante a adúltero, diante das reprimendas do amigo, mudava várias vezes a narrativa, a fim de se adequar ao padrão de comportamento esperado pelo outro. já não era mais por falta de dinheiro que ele não levara a mulher ao motel, mas sim porque ela "tinha bafo", por exemplo.

o amigo do aspirante a adúltero exercia uma grande influência sobre ele e provavelmente foi quem o convenceu a ir para a cidade grande em busca de aventuras sexuais. o aspirante, inseguro e provinciano (assim como seu amigo), fazia todo o possível para provar sua masculinidade. os critérios para ser visto como um homem me soaram ligeiramente arbitrários, estabelecidos pelo amigo influente, e não inteiramente compreendidos pelo outro. códigos de ética masculina contraditórios conviviam na relação entre os dois, mas a necessidade de contar histórias notavelmente falsas que deveriam ser aceitas como verdadeiras parece ser um aspecto comum no convívio entre os dois.

outro ponto digno de nota no relato sobre a tentativa malfadada de adultério é o modo como a cidade grande é narrada. em momento algum pareceu irritantemente falso o fato de uma conta de café ter custado 72 reais. é como se fosse possível contar histórias exageradas acerca da cidade grande.

também não diminuía a masculinidade dos amigos o fato de que esperavam cometer adultério fazendo uso de pílulas azuis.

19.9.14

129. cidade pequena, cidade grande - texto 1


os habitantes da cidade pequena geralmente vangloriam-se de características do local onde vivem supostamente adoradas por todos. eles imaginam que todos gostam, por exemplo, do fato de todo mundo se conhecer e de todos cumprimentarem a todos diariamente. é como se o anonimato da cidade grande fosse indesejável. a cidade pequena se pensa acolhedora em função de todos se conhecerem, como se não fosse acolhedora a possibilidade de estar só. há uma tranquilidade socialmente reconhecida na cidade pequena, mas a tranquilidade do anonimato, da possibilidade da solidão, da livre escolha dos vínculos que a cidade grande confere em geral não é reconhecida como tal.
os habitantes da cidade pequena têm seus assuntos favoritos. um deles, é claro, é o tempo. muitas conversas começam com um comentário: “esfriou”. a cidade pequena é acolhedora porque as pessoas sempre estão dispostas a conversar umas com as outras. boa parte das conversas, contudo, estão restritas a esta sorte de constatação meteorológica que, ademais, nem sempre é compartilhada por todos os interlocutores. em boa parte das vezes em que os habitantes da cidade pequena me interpelam com algum comentário a respeito da suposta queda abrupta da temperatura eu não penso que esteja realmente frio ou que a temperatura efetivamente caiu. de todo modo, creio não ser polido discordar a respeito de tão trivial questão.

17.1.12

128. à meia-noite levarei sua alma

acho que ainda vou precisar de muito tempo para compreender a complexa genialidade de zé do caixão. assisti hoje a seu primeiro filme, de 1964.
em que se baseia o sistema de valores de zé do caixão? como a ausência da fé em uma divindade leva à recusa a aderir a um sistema ético laico? o que simboliza a busca pela mulher perfeita para gerar uma prole diante da ausência de deus?
são questões que permanecerão sem respostas, pois a crítica ainda não é capaz de formular uma interpretação razoável a tão sofisticado enredo.