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1.11.15

136. um enterro qualquer

capítulo 1


A chaleira chiava na cozinha. No quarto, Natálio calçava os sapatos vagarosamente. Enquanto escutava o barulho da chaleira, pensava e observava cada pequeno pedaço de seus pés. Masseageava suavemente cada dedo, todos os dias, sentindo os ossos. Pensava nesses ossos que sustentavam seu corpo e que eram tudo o que restaria dele no futuro, como era tudo o que restava hoje de Emília. Massageava seus ossos dos pés, analisava o meio dos dedos, à procura de feridas ou alergias. Massageava seus ossos dos pés - eram seus ossos - e enquanto sentia essa camada interna e dura de si mesmo questionava se ela não era a sua mais sólida identidade. Seus ossos seriam tudo o que restaria de si mesmo, um dia. A sua própria existência seria resumida a estes mesmos ossos hoje protegidos, e a algumas lembranças que deixaria na memória de meia dúzia de pessoas. Apalpou o dedão esquerdo, notou uma pequena rouxidão. Seria um tumor? Mas não tinha ele batido contra a quina da mesinha da sala? Quando foi isso, ontem? Não, anteontem. Foi quando Natálio retornava da feira, como fazia toda quarta-feira. Então, bateu na mesinha na quarta-feira e somente agora ficou roxo. Será possível levar tantos dias para uma unha ficar roxa? Talvez o roxo não viesse da batida na mesinha. Deveria observar? Sim, provavelmente o mais prudente seria manter o dedão sob observação a fim de acompanhar o desenvolvimento da rouxidão e assim, quem sabe, verificar se sua procedência poderia mesmo estar relacionada à batida. Ainda com as mãos tocando suavemente a superfície do dedo, averiguando se sentia dor, Natálio prestou atenção no barulho da chaleira na cozinha. Há quanto tempo já estava fervendo a água para fazer seu café? 
Natálio colocou as meias e a seguir os sapatos mocassins já antigos, mas cujas solas ele já havia remendado algumas vezes em sua própria oficina. Levantou-se da beira da cama, onde estava sentado, resignado com o próprio fracasso em cuidar coisas simples como o tempo de fervura da água para o café. Contemplou a chaleira assoviando sobre a chapa do fogão, lembrou-se do roxo da unha no pé esquerdo que não teria capacidade de cuidar. Tentou sentir a unha sob o couro do sapato, mas não sentiu nada. Enquanto despejava a água quente sobre o filtro de café, pensou ter sentido uma leve dormência, talvez um formigamento, o que o fez colocar a chaleira de lado enquanto a água escorria pelo filtro reaparecendo escura do outro lado. Sentou-se no banquinho moxo que ficava próximo à pia e retirou com cautela primeiro o sapato e a seguir a meia do pé esquerdo. Olhou para a unha, que continuava exatamente do mesmo jeito que minutos antes. Ponderou por um momento se o sapato não iria “sufocar” o machucado, se não deveria deixá-lo arejado utilizando chinelos ao invés do surrado mocassim. Ainda descalço continuou a despejar a água para fazer o café, ciente dos inúmeros descuidos cometidos em apenas uma manhã e que poderiam lhe custar graves atrasos na sapataria. Sentia o frio do piso da cozinha nos dedos dos pés e nos calcanhares. Era sua pele que sentia, não seus ossos. Eram seus nervos que sentiam frio ou dor. Pisou com mais força até sentir o osso do dedo, ele ainda estava ali, o osso do seu dedo, de onde vinha quem ele era, que lhe dava sua identidade mais perene, pois seriam seus ossos que perdurariam a seus nervos. 
O café estava pronto e o cheiro quente se espalhava por toda casa. Natálio gostava de adoçar seu café e o tomava sempre com o acompanhamento de uma fatia de pão com requeijão, toda manhã. Sentou-se diante da pequena mesa ao lado da geladeira e, enquanto comia, o gato malhado em preto e branco se aproximava sorrateiro do dedo roxo. Depois, cheirou a meia e o interior do sapato, largados perto da pia e concluiu que nada daquilo lhe interressava. Mexeu as orelhas como se condenasse Natálio por lhe proporcionar uma vida tão insossa. Miou contrariado umas duas vezes e depois deitou num canto da cozinha, fazendo Natálio pensar em como aquelas condenações eram forçadas, pois o gato não tinha ele próprio força de vontade para mudar sua vida e para lhe acrescentar aventuras. Natálio puxou um pedaço miúdo do miolo do pão e enrolou em uma bolinha, bem pequena, bem pequena mesmo, que ficou tão enroladinha que nem parecia mais um pedaço de pão, mas um pedaço de qualquer outra estrutura sólida que não podia ser fruto de farinha, leite e ovo. Após breve contemplação daquela bolinha, constatou que sua perfeição era apenas aparente e saltavam aos olhos as rugosidades do pão, que só ficavam bem apertadas por pouco tempo após o contato com os dedos. Mastigando uma mordida daquele mesmo pão que era o pai da bolinha, atirou-a, a bolinha imperfeita, no gato. A bolinha bateu de forma diferente do que se imaginaria no pelo das costas do gato, sem causar a ele qualquer perturbação. Natálio pensou, “aí está, nem assim tu reage, gato”. Como poderia Natálio ser responsável pelo tédio de um gato incapaz de se revoltar com a bolinha, de senti-la, de agredir Natálio por tê-la atirado?
A bolinha só era visível pois havia estagnado numa das partes pretas do lombo do gato, que ainda dormia na ignorância das infâmias que se lhe cometiam pelas costas, ficando visível que ela não passava mesmo de um farelo de pão, uma sujeira que o gato derrubaria no chão da cozinha tão logo se mexesse ou se levantasse. Natálio imaginou aquela bolinha outrora perfeita caindo pesada sobre o chão branco da cozinha, permanecendo lá por vários dias até se juntarem a ela cabelos e pelos de gato, poeiras de todos os cantos, e aquela bolinha de pão se tornar definitivamente uma bolinha de sujeira. Levantou-se imediatamente e retirou a bolinha das costas do gato, que imaginou estar recebendo um carinho e virou a barriga para cima. Natálio roçou suavemente o dedo com a unha roxa na barriga do gato enquanto jogava a bolinha de pão no lixinho da pia. O gato gostou do carinho, mas mesmo assim tentou segurar o pé machucado de Natálio com as unhas e torná-lo algum tipo de inimigo, fazendo com que Natálio retirasse com despeito e rancor o pé de perto do gato e, sentado no banquinho moxo, recolocasse a meia e o mocassim. O gato se esfregava nas pernas de Natálio. 
Era mais um dia que começava, exatamente como todos os outros, exceto pelos deslizes que mudavam todos os dias e que recobriam a rotina de Natálio de fracassos. Não fora capaz de cuidar da saúde da parte de baixo de sua unha, o que lhe custava um dedo roxo embaixo da unha, sabe-se lá com que infecções podendo ali se formarem. Também, entretido com a verificação meticulosa do problema na unha, esqueceu a chaleira fervendo no fogão, atrasando o tempo de fazer o café e consequentemente atrasando sua chegada à sapataria. Talvez hoje ele tivesse que se privar de ver as frutas na mercearia da rua de trás antes do trabalho. Apenas passaria em frente da porta da dona Neuza com um cordial cumprimento, mas sem a tradicional apreciação das bananas que ultimamente sempre vinham verdes. O que ocasionaria essa antecipação da colheita das bananas? Tudo na natureza não devia ter seu tempo? Os produtores apenas repassavam o problema do amadurecimento das bananas aos consumidores, ao invés de eles próprios esperarem o momento certo de vender as bananas. Quem deixaria de comprar bananas, mesmo que estivessem verdes? A dona Neuza também não conhecia os produtores das bananas e dizia não poder fazer nada quanto a isso, uma vez que não era responsabilidade dela o estado que as bananas chegavam. Elas eram trazidas numa caminhonete. O dono da caminhonete também não era responsável pelas bananas. 
Frustrado ao relembrar o incômodo que o problema das bananas lhe causava diariamente, Natálio partiu resoluto direto para a sapataria, sem se culpar por não entrar na mercearia da dona Neuza. Acenou de longe:
- Bom dia, dona Neuza! As bananas estão verdes, não é? Não, não vou olhar hoje, estou realmente atrasado, respondeu, logo se perguntando intimamente o que comeria no seu lanche das 10h, já que havia preterido as bananas verdes. Sentiu uma fisgada no dedo esquerdo. Era a unha roxa roçando na costura do mocassim. Não havia sentido nada antes porque ainda não tinha caminhado de sapatos. Passou inconscientemente a mancar, na tentativa de proteger o pequeno machucado de novas contusões provocadas pela textura do calçado. Se deu conta que faltava alguma coisa, que havia esquecido de algo muito importante. O que poderia ser?
Ajeitou um pouco o sapato esquerdo com o bico do sapato direito, imaginando que reposicionando a costura a fisgada cessaria. Do que não se lembarava, o que havia esquecido? Enquanto tocava com um pé a parte de trás do outro pé, ajeitando o sapato, olhava para o céu azul e pensava como já estava quente àquela hora da manhã. Sentiu um desconforto também embaixo da camisa, não queria que a camisa limpa ficasse suada tão cedo, mas estava parado no sol e isso agora parecia inevitável. Seguiu seu caminho mancando um pouco, secando com um lenço as pequeníssimas gotas de suor que haviam se formado na testa e no pescoço, tentando evitar tocar as mãos suadas na camisa limpa. O que havia esquecido, afinal? Não devia estar segurando alguma coisa?
As bananas! Devia estar segurando as bananas que comprava diariamente na mercearia, após breves infortúnios ao discutir com dona Neuza sobre a condição em que as bananas ultimamente se encontravam. As bananas que comia sempre às 10h da manhã na mercearia, duas pela manhã, separando outras duas para a tarde.

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